sexta-feira, 23 de julho de 2010

Conversa com Dave St-Pierre


Não conheço o seu trabalho, mas adorei o seu discurso.



Várias vezes considerado como o “enfant terrible da dança no Québec”, Dave St-Pierre, 33 anos, foi o alvo da crítica quando, em 2004, apresentou La Pornographie des âmes, um “espectáculo-bofetada” controverso, composto por imagens chocantes, de humor negro e de nudez crua. Primeira parte de uma trilogia consagrada aos ritos de amor contemporâneo, esta peça de dança-teatro abordava a ruptura amorosa através de personagens com falta de afecto e em busca de amor, inspirando-se em figuras da dança contemporânea como Jan Fabre, Wim Vandekeybus e Pina Bausch. Agindo como um sociólogo da sua época, ele põe em cena esfolados vivos, violentos, desesperados e infinitamente sentimentais. A segunda parte, apresentada em 2006, intitulou-se Un peu de tendresse, bordel de merde!, e dissecava o apego afectivo, enquanto que o último opus, em preparação, será consagrado ao amor à primeira vista. Mas em Over my Dead Body, criado em 2009, Dave St-Pierre metia-se ele próprio em palco num solo que misturava autobiografia e ficção, em redor da doença e da morte. Perfil, na primeira pessoa, de um artista. Texto redigido a partir de uma entrevista com o artista que afirmou um gosto acentuado pela provocação e pelo espectacular.

Desarmar os espectadores

"Desarmante” é uma palavra de que gosto muito. Não me questiono muitas vezes sobre isso vendo um espectáculo porque, acima de tudo, tem que mexer comigo. Sou um espectador difícil: é preciso que entre dentro de mim. Gosto de não saber como reagir, não ter as ferramentas para compreender o que se passa. Muita gente sai dos meus espectáculos desarmado: alguns estão pasmados, mas não sabem porquê, outros reagirão mais tarde. É lindo. Vivemos realmente emoções fortes na vida. São um traumatismo que se tem de aprender a gerir. Desarmar o espectador permite atingi-lo sem que ele esteja preparado. Ele deixa de ter controlo e passa a ter que gerir as suas emoções. Por vezes não tem outra escolha senão deixar-se flagelar. As ferramentas vêm com o tempo.

MOSTRAR O ÍNTIMO

As obras da [cineasta] Catherine Breillat interpelam-me muitíssimo, sobretudo pela sua forma de mostrar a violência ou o sexo sem gratuidade. Mostrar aquilo que permanece um hábito escondido torna-se provocante e violento, ao mesmo tempo que, na vida de todos os dias, não nos incomoda assim tanto, enquanto permanece na esfera privada. Ao torná-lo público, esta cineasta provoca-me enquanto criador, nomeadamente quanto aos meus limites. De facto, até onde posso ir?

La Pianiste, do Mickael Haneke, com Isabelle Huppert foi um dos filmes que me levou a criar La Pornographie des âmes. Aparentemente, esta é mulher normal, apesar de fria. No entanto, ela tem um lado perverso que toda a gente ignora e que a leva a mutilar-se, até à excisão. Acho fascinante que tantas pessoas tenham certas atitudes em segredo e evitem falar delas porque as vão achar anormais.

Claro, algumas têm patologias ,como a protagonista do filme, mas para muitos outros são somente pequenos gestos, pequenas perversidades. É humano, é o que mantêm o nosso equilíbrio. Mas por uma razão que desconheço, uma parte da população fecha os olhos sobre isso como se fosse nojento. Tudo depende da forma como fomos educados. Por exemplo, em minha casa, ninguém podia estar nu! Mesmo em roupa interior, não dava. Eu não percebia porquê. “Porque é assim !”. Muitas vezes, quando somos jovens, não nos explicam a razão de certas convenções.

Eu já era rebelde : “Sim, mas isso incomoda?” As pessoas que seguem as regras reforçam a convenção, enquanto que outras questionam a ordem. Durante muito tempo, não me sentia no meu lugar porque gostava de coisas que muita gente não gostava.

Não percebia bem porquê. Em boa verdade, é sem dúvida porque as incomoda que a mim me entusiasma! As pessoas não gostam de ser acordadas e de ver outras coisas que não aquilo que lhes foi dado a conhecer. Acho o conforto muito aborrecido, até porque não se passa nada. É politicamente correcto e “gentil”. Necessito de ser puxado para o desconforto.

O DESCONFORTO

Se me comparo a outros criadores, não me acho muito subversivo. Ao lado de Jan Fabre, Wim Vandekeybus ou Romeo Castelucci, sou um menino de coro! Jan Fabre pôs homens em erecção em palco e bailarinos que inserem objectos nos seus orifícios… Ele afastou as convenções. Hoje em dia, em dança contemporânea, as inserções de objectos tornaram-se quase em norma. Assim como o nu. Como para uma comédia de Hollywood, trata-se praticamente de uma receita. Perante os espectáculos de Jan Fabre, sinto-me no meu universo. Não me choca. Ao contrário, reconforta-me: há um mundo paralelo que existe!

O universo da performance é muito mais subversivo. Eu podia chocar-me com o Chris Burden que se baleou no braço durante a sua performance Shoot. Interrogar-me-ia sobre o que tinha ido ver. Aliás, que género de espectador vai ver este tipo de performance? A auto-mutilação choca-me porque não entendo que existam pessoas que tenham prazer a fazer-se mal. Enquanto bailarinos, podemos-nos permitir ter dor até um certo ponto. O corpo é sagrado. O meu estado de saúde pode ter condicionado esta visão [Dave St Pierre sofre de fibrose quística pulmonar, cuja média de vida é 37 anos]. O meu corpo já sofre demasiado, pelo que não percebo porque há pessoas que infligem auto-sofrer. Não é preciso magoar-se. Penso em Castelucci: quando ele se faz atacar por cães [em Inferno, ver OBSCENA #19], ele veste uma roupa de protecção. No entanto, há seis cães que lhe saltam em cima! Não é necessário que ele se faça verdadeiramente morder para compreender a violência desta cena. Mesmo fazendo batota, podemos atingir a verdade. Em 1964, Yoko Ono, em camisa branca e com um par de tesouras em cima de uma mesa, convidava o público a cortar a sua roupa. No início, alguns não se atreveram a fazê-lo. Ela incitava os espectadores a interagir. Outros artistas, como Marina Abramovic, convidaram o público a agir directamente nos seus corpos com ajuda de diferentes instrumentos postos à sua disposição. E com o tempo, os espectadores tornam-se cada vez menos inibidos nas suas intervenções. É impressionante.

Quando os bailarinos se esbofeteiam na cara em Un peu de tendresse bordel de merde!, eu não considero que isso seja um acto de violência infligida ao corpo; é antes um estado emotivo, um estado de transe. É o público que nos pára, e considero isso magnífico! Quando o público decide que já chega, é a mais bela das coisas. Neste caso também, cada um tem os seus limites. O estado do público muda consideravelmente de uma cena a outra. No espectáculo, esta cena torna-se muito emotiva em função do que a precede e do que se segue. É uma violência feita à nossa imagem, ao que nós representamos. Mesmo que muita gente pensa que o que faço é gratuito, as bofetadas tem para mim um significado. Na vida, há sempre alguém para te dar uma bofetada! Bofetadas simbólicas, por vezes. As bofetadas são uma forma de o representar em palco.

O SUBVERSIVO

A palavra “subversão” não significa o mesma para toda a gente. O que é subversivo para mim não é necessariamente para os outros. Por exemplo, há filmes americanos que considero hiper-chocantes por irem contra os meus valores: os filmes de direita, muito católicos, com casamentos, crianças, carros, piscinas, etc. Se uma personagem não tem um trabalho e um jipe, ele não venceu na vida. Nestes filmes americanos, esta noção de sucesso representa para mim algo de aberrante. É uma coisa que não percebo e que altera completamente a minha forma de ver a sociedade. Ora, para noventa e cinco por cento da população, é o género de discurso que eles ouvem todos os dias na televisão. Para eles, não é de todo subversivo. Por outro lado, os artistas tentam chocar, provocar e de afastar os limites; são inconformistas mesmo que, paradoxalmente, tornou-se numa norma para eles. Mas para o senhor e a senhora anónima, a arte é subversiva.

Em Pornographie des âmes, um intérprete morre fazendo amor. Minutos antes, ele põe um preservativo. Interrogo-me muito sobre esta cena, este gesto, no fundo muito “politicamente correcto”. Ora, quando este espectáculo foi apresentado em Roma, sabendo que o Vaticano é contra o uso do preservativo, este quadro tornou-se, neste contexto, subversivo. Acabei por não saber como considerar as coisas! Por ter apresentado os meus espectáculos um pouco por todo o lado, a reacção do público é relativamente a mesma. No entanto, há censuras segundo os países. A maior parte das vezes os programadores pediram-me de modificar o Un peu de tendresse bordel de merde! sob pretexto de conhecerem o seu público. Pediam-me para suprimir a cena das “louras”, onde uma dezena de homens nus trazendo perucas louras passeiam na sala por entre os espectadores para fazerem exercícios de alongamento. Antes eu hesitava, enquanto que hoje, recuso-me categoricamente: os programadores que assumam as suas escolhas! As louras não são subversivas, são palhaças! Por outro lado, o facto de circular no meio do público incomoda. Uma produtora em Munique explicava-me que os espectadores “alugam” o lugar onde se sentam e que não se pode “penetrar” nesse espaço. Se os espectadores não quisessem ser tocados, que fossem aos teatros com cabines à volta dos bancos, como nos peep-shows!

Over my Dead Body é sem dúvida o mais subversivo que fiz. Está no limite da performance porque trata-se na minha vida de verdade. Apareço com a minha garrafa de oxigénio e estou muito magro. Este show impressionou os espectadores. Misturo a minha vida real e o teatro. No entanto, não me inflijo nenhuma dor no palco ; é a doença que me enfraqueceu fisicamente. Coloco em cena o meu próprio corpo em decadência. Considero a decadência como uma poesia assustadora, é tão humano! Foi aliás uma das primeiras críticas que recebi: “ver humanos no palco!” Talvez isso seja subversivo: colocar em palco o humano. Penso que a verdade é bela. As pessoas são mais tocadas quando vêem humanos em palco do que na televisão.

O HUMANO

Os performers alteram a forma como um espectáculo é feito. Muitas vezes, não há início, não há desenvolvimento, não há crescente dramático nem dramaturgia. Um mesmo gesto pode ser repetido mil vezes; pode ser muito monótono. Isto leva o performer a um estado de fadiga extrema que me impressiona. Aliás, reparo que várias vezes um bailarino porque salta mais alto do que os outros e corre mais rapidamente, se torna sobre-humano, e ao mesmo tempo, é uma autêntica “máquina”. Uma máquina que não tem “pudor”: ela está em excesso, um excesso controlado.

Vivemos na era dos videoclips. Mesmo os videoclips tornaram-se longos demais. Hoje em dia, vivemos com o twitter. Exprimimo-nos em quatro palavras, duas imagens, e é só isso. Levar tempo a ver uma imagem é subversivo. Em la Pornographie des âmes, mesmo se a maioria das imagens são curtas, outras duram oito minutos. De um segundo a outro, passas do riso ao choro, o que é muito raro na vida de todos os dias, de uma maneira tão vincada, excepto perante uma catástrofe. É como se se brincasse aos videoclips com as emoções. Isto atrai-me bastante, mas ao mesmo tempo vou desacelerando antes de lançar as imagens para que as pessoas se captem a ideia. Tem que se passar por cima do mal-estar para compreender. Vemos atrocidades na televisão. Mas o ecrã cria um distanciamento. Muitas pessoas protegem-se assim. Nos meus espectáculos levo as emoções ao extremo, nomeadamente por via da música. O que me atinge mais, é quando, num determinado momento, uma sequência se torna insuportável. Cria uma espécie de catarse. Após la Pornographie des âmes, perguntaram-me o que iria fazer a seguir. E surgiu Un peu de tendresse bordel de merde! Estar nu ou mijar em palco já eu vi antes. Tudo depende da forma como se coloca.

Todavia, com Over my Dead Body, abordo uma coisa visceral: a morte. Mesmo o amor não é tão visceral! Podemos gritar se virmos um casal a discutir. No entanto, ver alguém morrer é, ainda, a coisa mais horrível de se viver no plano emotivo. Quando alguém nos deixa, desmoronamo-nos, mas refazemo-nos. Com a morte, toquei num lado sensível. Para a minha próxima peça, penso muito sobre esta questão, pois regresso à minha trilogia que fala do amor: desta vez, tratarei do amor à primeira vista. Ora, o amor à primeira vista é violento: até onde posso ir dentro disso? A carne pode abrir-se? Haverá um meio de fazer batota para obter o efeito de uma performance sem utilizar muito o teatral? Já vi falsas espingardas atirar em palco: é sem interesse, porque sabemos que é falso, enquanto deveria ser golpeante. Em Un peu de tendresse bordel de merde!, ultrapassamos a magia do teatro. É o que considero de belo: quando damos bofetadas, damo-las de verdade.

O INSUPORTÁVEL

O filme Twentynine Palms de Bruno Dumont deu-me literalmente vontade de vomitar. Não é nojo, é uma reacção das entranhas. Para além da cena da violação, de entre as coisas mais atrozes que vi no cinema – de uma violência estranha, a cena dura tanto tempo que se torna insuportável – a lentidão do filme perturbou-me completamente. A espera é muitas vezes intolerável. Ora, uma cena de crime chega brutalmente. Toda a gente no público tem o coração nas mãos. Alguns saíram mesmo para vomitar. No entanto, não vemos nada, é alucinante. Por outro lado, a banda sonora perturbou-me durante meses… o actor dá talvez umas cinquenta facadas. Nem me lembro das imagens. Esperava apenas que a faca entrasse na carne. Entra. Entra. E longo. E longo. Sentia-me mal. Saí de lá, gritei.

Como posso suscitar tal emoção em palco? Interrogo-me bastantes vezes sobre o acto sexual apresentado em palco. No teatro, ver actores simular o acto não me parece interessante: fazem de conta, “brincam”. Enquanto que podes ver actos sexuais em bares! Vendo um filme de Catherine Breillat, e uma vez que estava no cinema não para ver uma obra erótica, senti um estímulo sexual. Enquanto criador, posso eu excitar sexualmente o meu público? Em la Pornographie des âmes, não há estimulação sexual, apenas imagens. A minha fantasia absoluta, e essa é a base do espectáculo encerra a trilogia sobre o amor, seria ir mais longe. Muitas pessoas gostam desta sobredose de emoção na minha obra, outros odeiam-na de morte. Para eles, é “Hollywood”. De facto, faço espectáculos espectaculares e não o nego. As pessoas vão ver espectáculos para se divertir. Porque é que o meu trabalho se torna comercial só por eu usar métodos hollywoodescos? Porque não aplicar esta dimensão hollywoodesca na dança contemporânea? O que é a “arte contemporânea”? O que é a “arte” de hoje?

Que a chamem de “arte subversiva” ou “arte comercial”, são denominações que não querem dizer nada. Se me perguntarem o que faço, eu respondo que não sei. Se tomarmos isso num primeiro grau, eu faço espectáculos de variedades. No absoluto, coloco um espelho e as pessoas vêem-se. A televisão, por vezes, age assim. Mas como criador, espero fazer mais do que isso. Queria que o público se interrogasse. Não quero que seja apenas uma imagem que reflecte: quero que a imagem fale.

Dave St Pierre apresentou Un peu de tendresse bordel de merde! no dia 13 de Julho de 2010 no Palco Grande da Escola D. António da Costa, integrado no 27º Festival de Teatro de Almada. No mesmo dia, houve uma conversa com o coreógrafo e o director da OBSCENA.

Texto construído por Katya Montaignac e publicado em colaboração com a revista canadiana Cahiers de Thèâtre JEU.

Este perfil foi publicado na OBSCENA #24.

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