domingo, 19 de abril de 2009

Pai violava filhas há 12 anos

Foi a 29 de Maio do ano passado que terminou o pesadelo de Joana e Raquel. Pelas duas da tarde, Carlos levou a filha mais velha para a marquise do seu quarto e abusou dela mais uma vez, longe de saber que seria a última. Mas foi. Tudo acabou no momento em que uma vizinha da frente, Maria [nome fictício], assistiu, por acaso, "àquele despe-e-veste nojento" que conduziu à violação que não lhe sai da memória. "Seu porco, larga a miúda", gritou-lhe, mas sem sucesso. "Ao olhar para mim, parece que ainda lhe deu mais gozo abusar da filha", contou ao DN Maria, que alertou a mãe de Joana e de Raquel, e ambas foram fazer queixa à GNR.

Cristina denunciou Carlos, mas só acreditou verdadeiramente após a sentença dos exames médicos. "Eu não podia acreditar que ele era um monstro", desabafa. Também Miguel ficou furioso ao saber que a sua namorada era violada pelo pai. "Quando me contou, banhada em lágrimas, o que aconteceu naquele dia e durante anos, nem sei o que apeteceu fazer-lhe [a Carlos]", confessou ao DN, adiantando que a partir daí percebeu porque "foi tão difícil conseguir um primeiro beijo" da Joana.

Ficou furioso, é certo, mas "sabia que ela não tinha culpa", e por isso continuaram o namoro iniciado a 21 de Maio, dias antes da última violação. Para Miguel, "não foi fácil engolir", mas gosta dela. E é compreensivo o suficiente para entender a dificuldade de Joana durante a intimidade: "Se o primeiro beijo foi complicado, a primeira vez nem se fala."


um namorado

É ali, no quarto onde, vezes sem conta, foram violadas pelo próprio pai desde os seis anos, que procuram enfrentar "aquela coisa horrível" que lhes aconteceu, da meninice à juventude. Raquel e Joana (chamemo-lhes assim, continuando a guardar a verdadeira identidade das vítimas) dormem ali, é ali que partilham segredos, é ali que ouvem música, é ali que lêem. É ali que elas fazem, afinal, tudo o que duas irmãs de 17 e 19 anos fazem habitualmente no compartimento mais íntimo da casa: o seu quarto. Mas elas não são duas irmãs quaisquer. E este não é um quarto normal, de uma casa normal, de uma família normal.

O quarto não era delas, mas sim dos pais, Cristina Lourenço e Carlos Correia. É o quarto onde Carlos lhes roubou a inocência tantas e tantas vezes, indiferente aos apelos das filhas para parar. Talvez por isso, ou por qualquer outra razão desconhecida, foi o espaço que pediram à mãe para passar a ser o delas. Cristina justifica que consentiu porque é o mais espaçoso (e é de facto) para fazer o que queriam: transformar os antigos beliches em duas camas de solteiro. Um pedido por detrás do qual não se sabe bem que razões estão. Falta de noção ou puro masoquismo, dirão uns; coragem para exorcizar os fantasmas do passado, opinarão outros.

Seja como for, é naquele espaço que falam pela primeira vez desde que o seu pai foi condenado pelo crime, do pesadelo que teve início há 12 anos, de forma contínua e ininterrupta. Um segredo só delas, das duas manas, e que trancaram naquelas quatro paredes, partilhando-o apenas com os "habitantes" daquele mundo em tons terrivelmente infantis cor-de-rosa, que é só seu. Algo tão íntimo e embaraçante, só confessável à Sr.ª de Fátima que as vigia, dia e noite, do altar em que foi transformada a arca de madeira colocada junto à marquise, o local onde Joana (a mais velha) foi literalmente "encostada à parede" pelo pai pela última vez a 29 de Maio de 2008 (ver caixa). O segredo que a vizinha descobriu da janela da frente e denunciou à mãe e à polícia pôs fim ao pesadelo.

A primeira vez na quinta

Desde então, é ao golfinho, ao elefante de pelúcia, e ao cão plantado na mesinha-de-cabeceira das duas, que Joana e Raquel confessam o que viveram desde que começaram a "ser mulheres antes do tempo e à força". Joana abre uma excepção e conta ao DN, em poucas palavras e evitando o olhar da mãe, como perdeu a virgindade. Não da forma como sonhava ser e muito menos com quem sonhava. Muito antes sequer de ter a verdadeira noção do que isso era. Tinha seis anos, brincava na quinta para os lados de Alcochete, onde os pais eram caseiros. Na memória só guarda aquilo que antes lhe dava tanta alegria: "Ia ajudá-lo [ao pai, a palavra que agora recusa pronunciar] a tratar dos cavalos e dos outros animais. Ele agarrou-me e, e..."

As palavras, escolhidas a dedo, custam a sair. São ditas com o olhar fixo e as pernas bambas. Joana parece regressar ao dia em que Carlos Correia, hoje com 46 anos, "fez aquilo que não se faz a uma filha. Aquilo que devia fazer com a nossa mãe, que era a mulher dele". Num tom de voz baixo mas revoltado, diz que só quer "esquecer tudo". "Porque foi muito mau, porque doeu, porque lhe pedi para parar e ele não parou, porque fiquei diferente das outras meninas, porque, porque... não quero falar mais sobre isso."

E, de repente, muda de conversa e prefere lembrar as amiguinhas da quinta, filhas do casal para quem os pais trabalharam como caseiros quando começaram a viver juntos, após terem passado por outra quinta. "Elas eram nossas amigas." O sorriso, até agora tímido, forçado, rasga-se nos rostos das irmãs quando Joana recorda os baloiços da quinta onde as quatro meninas viviam a infância em pleno. Até ao dia em que o construtor desses mesmos baloiços violou a própria filha.

A esta altura da conversa, Miguel (nome fictício), até então calado, ergue a voz e o corpo do sofá da sala em defesa da namorada Joana, com quem está há 11 meses. E não esconde a raiva. "Ele sabe-a toda, apesar de ser analfabeto, até baloicinhos fez para encobrir o que já andava a tramar sabe-se lá há quanto tempo." Joana garante que "na quinta só aconteceu uma vez, mas já essa foi demais". Uma só vez que a mãe das duas raparigas admitiu em tribunal ter presenciado. Mas ao DN negou, do início ao fim da longa conversa, saber que o companheiro violava as próprias filhas.

Violar as duas em simultâneo

"É verdade que ele mudou muito desde que, há mais ou menos dez anos, viemos viver para Samora Correia. Foi aqui que a nossa família acabou. Ele meteu-se nos copos, ficou desempregado [era calceteiro na Câmara de Benavente] e passava o dia de tasca em tasca. O resto do tempo estava em casa com as filhas. Mas daí a abusar das meninas, nunca imaginei", garante Cristina, de 39 anos. Enquanto a mãe, como que incomodada com o interrogatório, vai à cozinha controlar o frango que está a assar no forno, Joana continua a contar como tudo se passou anos a fio. Raquel, um ano e tal mais nova, limita-se ouvir.

Primeiro foi na casa que os pais compraram no Bairro Arneiro dos Corvos (Samora Correia) e, de há dois anos para cá, no actual apartamento camarário que fica em frente do antigo, aquele que tiveram de abandonar porque os vários trabalhos de Cristina como empregada doméstica não foram suficientes para pagar a renda ao banco. Numa e noutra casa, a abordagem de Carlos pouco variava, como lembra Joana, num nervosismo denunciado pelo rodar do anel no dedo, magro como toda ela, sem parar: "Muitas vezes estávamos a ver televisão e ele chegava de ir passear o Óscar, largava o cão e chamava uma das duas para o quarto onde dormia com a mãe. Trancava porta. A que ficava de fora já sabia: ia a seguir."

O rosto rosado de Raquel fica estático com o relato da irmã, que, pausadamente e com o olhar no vazio continua a contar o que nunca contou a não ser em tribunal: "Ele despia-se, eu despia-me. Ele fazia o que lhe apetecia. Eu pedia-lhe para parar mas ele não parava. Era assim até ficar satisfeito."

Só que, às vezes, Carlos parecia insaciável. E se a maior parte das vezes tinha relações sexuais com uma filha e só depois com a outra, houve situações em que violava as duas irmãs em simultâneo. Joana não consegue explicar a situação, mas, com as mãos a torcerem as calças de ganga, confirma que "sim, é verdade". Nessas alturas, olhavam uma para a outra, mas nada faziam "por medo da reacção dele".

Tudo começava no quarto e lá acabava. As duas irmãs nunca falaram sobre o assunto. Nunca o assunto foi tema de conversa entre elas. Cada uma guardou para si o que lhe ia o íntimo e que ambas sabiam apenas pela troca de olhares. E que o medo do que lhes podia acontecer, a elas e à mãe, calou sempre.

Agora, juntas na mesma sala e no mesmo quarto, no tal quarto, confessam que o que sentem pelo pai é "muita raiva". As palavras são de Joana, mas Raquel confirma com a cabeça e diz que não se quer casar nem ter filhos. Não explica porquê e talvez não seja preciso. Joana, pelo contrário, gostaria de constituir família embora, confessa, seja assaltada constantemente por dúvidas: "Morro de medo que aconteça aos meus filhos o que me aconteceu."

Ambas, franzinas e nervosas, aparentando bem menos idade que a que têm, conhecem o caso de Fritz, o austríaco, "monstro de Amstetten", que violou a filha, manteve-a cativa anos a fio e teve com ela sete filhos. Joana diz que sabe que lhes podia ter acontecido o mesmo e acha que foi sorte nunca terem engravidado do próprio pai. Afinal, não havia qualquer cuidado. À pergunta se tomavam a pílula, o abanar de cabeça é negativo. E o mesmo gesto quando as questionamos se ele usava preservativo. Às vezes, Joana pensava nessa hipótese e "ficava cheia de medo". "Ainda bem que isso não aconteceu. Não seria normal ter filhos do meu pai".

Pais sem sexo

De volta da cozinha e à conversa, a mãe confessa que a vida sexual entre ela e o companheiro tinha terminado há muito. "Nunca desconfiei de nada porque eu também não queria estar com ele desde que se começou a embebedar e a bater-me. E depois uma pessoa vem cansada do trabalho de manhã à noite e só quer que a deixem em paz." Carlos era sempre o primeiro a deitar-se, enquanto Cristina dormia "o primeiro sono no sofá", agarrada às filhas, que, diz, "são a luz dos meus olhos".

Ao telemóvel, uma colega do trabalho de Cristina diz-lhe que a vida continua e que há que olhar para a frente. É o que tenta fazer, mesmo com as constantes ameaças da família de Carlos, para a casa de quem foram viver quando Cristina nem tinha ainda 18 anos. "Nessa altura era tudo um mar de rosas. E mesmo depois, quando o internei na psiquiatria e na unidade de alcoologia do Júlio de Matos, deu-me flores para agradecer o que tinha feito por ele, cabisbaixo." Hoje, Cristina diz que sabe que "tudo era falso". E repete constantemente que a vida continua.

A dela, de patroa em patroa, passando por um banco e por um lar. De manhã à noite, é empregada doméstica em vários locais para sustentar a família, agora composta por três mulheres, que garantem que vivem muito melhor sozinhas. Joana e Raquel também ajudam nas despesas da casa com o que recebem de uma bolsa que inclui estágio profissional. Desde que o pai foi detido, e condenado a 22 anos de prisão, pelo que foi calculado em 3600 violações de cada uma das filhas (ver caixa acórdão do tribunal), Joana trabalha num lar de idosos e Raquel, numa cooperativa. Gostam do que fazem e esperam obter o curso e continuar a trabalhar lá.

Os momentos de lazer são passados com a melhor amiga: a mãe. Há ainda duas amigas em comum que sabem de tudo e "mesmo assim gostam de nós. São mesmo amigas, apesar de saberem que somos diferentes delas". O resto é passado. Mas um passado ainda demasiado presente.


in Diário de Notícias

1 comentário:

paperdoll disse...

isto é chocante... =/